#BSB60 | Relatório do Plano Piloto [Comentado]
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#BSB60 | Relatório do Plano Piloto [Comentado]

Atualizado: 27 de fev.

A ideia de construir a nova capital do país começou a se amadurecer através da publicação do edital no Diário Oficial da União para o "Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil", em 1956, determinado pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Brasília, que viria ser inaugurada quatro anos depois, hoje é Patrimônio Cultural da Humanidade. O edital exigia um traçado básico da cidade, devendo indicar a disposição dos principais elementos da estrutura urbana para a implantação da cidade, na qual estava previsto o número de 500 mil habitantes.


Lúcio Costa entrega, então, o Relatório do Plano Piloto. Atrasado e sem a apresentação sofisticada da qual dispunham outras propostas urbanísticas, sua vitória é motivo de controvérsias. Porém, nota-se que a maior vantagem de Lúcio Costa no concurso foi sua habilidade em conjugar, de maneira prática, todos os elementos que estavam ao seu alcance, importando e incorporando alguns conceitos urbanísticos. A pedido de Lúcio Costa, seu texto fora anteriormente revisado por seu amigo Carlos Drummond de Andrade, que corrigiu a ortografia antiga.

O relatório de 24 páginas possui um texto gramaticalmente rico, composto por introdução e 23 seções na qual justifica seu pensamento, acompanhado de croquis.

Segue o Relatório acrescido de comentários da nossa equipe em caixas cinza, e que pode ser encontrado limpo e na íntegra através do site brazilia.jor.



Indicamos esses dois livros para quem quer se aprofundar no assunto:





RELATÓRIO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA

(Lúcio Costa)


... José Bonifácio, em 1823, propõe a transferência

da Capital para Goiás e sugere o nome de BRASÍLIA.


Desejo inicialmente desculpar-me perante a direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital, e também justificar-me.


Não pretendia competir e, na verdade, não concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta.


Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples "maquis" do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da idéia apresentada, se não eventualmente, na qualidade de mero consultor. E se procedo assim candidamente, é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais facilmente e não terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de ninguém.


A liberação do acesso ao concurso reduziu de certo modo a consulta àquilo que de fato importa, ou seja, à concepção urbanística da cidade propriamente dita, porque esta não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como, no entender de cada concorrente, uma tal cidade deve ser concebida.

Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de UMA CIDADE MODERNA QUALQUER, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E NOBREZA DE INTENÇÃO, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir, ao conjunto projetado, o desejável caráter monumental. Monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa.


Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país.


Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução:


“Desejo inicialmente desculpar-me [...] pela apresentação sumária do partido”
Há um texto de Juscelino Kubitschek no qual explana a conversa que teve com Sir William Holford, integrante do júri do concurso do Plano Piloto e assessor de urbanismo do governo britânico, a respeito do relatório de Lúcio Costa:
"Tudo era pobre na apresentação - desleixo aliado à pobreza do material - mas havia grandeza na concepção. Compreendera, num relance, que estava em face de um projeto que revelava genialidade. Solicitou que lhe traduzissem o texto da exposição e concluiu que o trabalho de Lúcio Costa merecia ser premiado. Nele, tudo era coerente. Racional. E em face da essência urbana, caso fosse executado, conferiria grandeza à nova capital. Tratava-se, sem dúvida, de uma verdadeira obra de arte, tanto pela clareza quanto pela hierarquia dos elementos integrantes do conjunto.".

“como simples ‘maquis’ do urbanismo”
Provavelmente, Lúcio se referia ao grupo francês chamado maquis, da Segunda Guerra, que se escondia em zonas montanhosas para atacar de surpresa os nazistas. Cabe lembrar que o urbanista era nascido na França.

“é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório[...]”
Na sua visão, a apresentação simplista seria justificada pelo argumento de que não tomaria tempo do júri, pois seria mais fácil analisar, aprovar ou desaprovar a ideia.

“não apenas como URBS, mas como CIVITAS”
Urbs refere-se à materialidade urbana; Civitas está relacionado aos valores cívicos e de comunidade.

“E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E NOBREZA DE INTENÇÃO”
O trecho expressa a visão romântica dos teóricos modernistas da época: o significado das obras é, em grande parte, amarrado a justificativas teóricas ou utopias.

Relatório do Plano Piloto de Brasília

1 – Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz (fig. 1).


2 – Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo eqüilátero que define a área urbanizada (fig. 2).

Relatório do Plano Piloto de Brasília

3 – E houve o propósito de aplicar princípios francos da técnica rodoviária — inclusive a eliminação dos cruzamentos — à técnica urbanística, conferindo-se ao eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local e dispondo-se ao longo desse eixo o grosso dos setores residenciais (fig. 3).

A referência lembra a Reforma de Paris, comandada pelo Barão Haussmann, ocorrida entre 1852 e 1870. O foco principal da reforma foi a melhoria da circulação, com acesso rápido e visão estrategista. Também foram eliminados bairros considerados insalubres e ruas foram arborizadas.

4 – Como decorrência dessa concentração residencial, os centros cívico e administrativo, o setor cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas a armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais, e, por fim, a estação ferroviária, foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo transversal que passou assim a ser o eixo monumental do sistema (fig. 4). Lateralmente à intersecção dos dois eixos, mas participando funcionalmente e em termos de composição urbanística do eixo monumental, localizaram-se o setor bancário e comercial, o setor dos escritórios de empresas e profissões liberais, e ainda os amplos setores do varejo comercial.

Os urbanistas modernos defendiam a ideia de setorização de funções, tanto para simplificar o projeto quanto para estabelecer um controle espacial enquanto modelos ideais. A setorização é objeto de polêmica entre os urbanistas, pois é vista por alguns como contraditória à espontaneidade urbana.

Relatório do Plano Piloto de Brasília

5 – O cruzamento desse eixo monumental, de cota inferior, com o eixo rodoviário-residencial impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destine ao estacionamento ali, remanso onde se concentrou logicamente o centro de diversões da cidade, com os cinemas, os teatros, os restaurantes etc. (fig. 5)


6 – O tráfego destinado aos demais setores prossegue, ordenado em mão única, na área térrea interior coberta pela plataforma e entalada nos dois topos mas aberta nas faces maiores, área utilizada em grande parte para o estacionamento de veículos e onde se localizou a estação rodoviária interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma (fig. 6). Apenas as pistas de velocidade mergulham, já então subterrâneas, na parte central desse piso inferior que se espraia em declive até nivelar-se com a esplanada do setor dos ministérios.


7 – Desse modo e com a introdução de três trevos completos em cada ramo do eixo rodoviário e outras tantas passagens de nível inferior, o tráfego de automóveis e ônibus se processa tanto na parte central quanto nos setores residenciais sem qualquer cruzamento. Para o tráfego de caminhões estabeleceu-se um sistema secundário autônomo com cruzamentos sinalizados mas sem cruzamento ou interferência alguma com o sistema anterior, salvo acima do setor esportivo e que acede aos edifícios do setor comercial ao nível do subsolo, contornando o centro cívico em cota inferior, com galerias de acesso previstas no terrapleno (fig. 7).

Os trevos no eixo rodoviário são as chamadas tesourinhas do Eixão. A solução aplicada em Brasília contra os cruzamentos é inspirada nas highways americanas, que pretendem separar as circulação de carros da circulação de pedestres.
Relatório do Plano Piloto de Brasília

8 – Fixada assim a rede geral do tráfego automóvel, estabeleceram-se, tanto nos setores centrais como nos residenciais, tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantir-lhes o uso livre do chão, (fig. 8) sem contudo levar tal separação a extremos sistemáticos e anti-naturais pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família Ele só se "desumaniza", readquirindo vis-à-vis do pedestre feição ameaçadora e hostil quando incorporado à massa anônima do tráfego. Há então que separá-los, mas sem perder de vista que em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe.

Relatório do Plano Piloto de Brasília


9 – Veja-se agora como nesse arcabouço de circulação ordenada se integram e articulam os vários setores. Destacam-se no conjunto os edifícios destinados aos poderes fundamentais que, sendo em número de três e autônomos, encontraram no triângulo eqüilátero, vinculado à arquitetura da mais remota antiguidade, forma elementar apropriada para contá-los. Criou-se então um terrapleno triangular, com arrimo de pedra à vista, sobrelevado na campina circunvizinha a que se tem acesso pela própria rampa da auto-estrada que conduz à residência e ao aeroporto (fig. 9). Em cada ângulo dessa praça — PRAÇA DOS TRÊS PODERES — localizou-se uma das casas, ficando as do Governo e do Supremo Tribunal na base e a do Congresso no vértice, com frente igualmente para uma ampla esplanada disposta num segundo terrapleno, de forma retangular e nível mais alto, de acordo com a topografia local, igualmente arrimado de pedras em todo o seu perímetro. A aplicação em termos atuais, dessa técnica oriental milenar dos terraplenos, garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental imprevista (fig. 9). Ao longo dessa esplanada — o Mall dos ingleses —, extenso gramado destinado a pedestres, a paradas e a desfiles, foram dispostos os ministérios e autarquias (fig. 10). Os das Relações Exteriores e Justiça ocupando os cantos inferiores, contíguos ao edifício do Congresso e com enquadramento condigno, os ministérios militares constituindo uma praça autônoma, e os demais ordenados em seqüência — todos com área privativa de estacionamento, sendo o último o da Educação, a fim de ficar vizinho do setor cultural, tratado á maneira de parque para melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do planetário, das academias dos institutos, etc., setor este também contíguo à ampla área destinada à Cidade Universitária com o respectivo Hospital de Clínicas, e onde também se prevê a instalação do Observatório. A Catedral ficou igualmente localizada nessa esplanada, mas numa praça autônoma disposta lateralmente, não só por questão de protocolo, uma vez que a Igreja é separada do Estado, como por uma questão de escala, tendo-se em vista valorizar o monumento, e ainda, principalmente, por outra razão de ordem arquitetônica: a perspectiva de conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma, onde os dois eixos urbanísticos se cruzam.

“[...]vinculado à arquitetura da mais remota antiguidade”
Faz referência à ágora para os atenienses, espécie de praça onde todos transitavam todos os cidadãos, para prática política, filosófica, religiosa, esportiva e comercial.

“o Mall dos ingleses”
The Mall é uma importante avenida da cidade de Londres, que vai Palácio de Buckingham ao Admiralty Arch, obras de grande símbolo de poder.
Relatório do Plano Piloto de Brasília

10 – Nesta plataforma onde, como se via anteriormente, o tráfego é apenas local, situou-se então o centro de diversões da cidade (mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face da plataforma debruçada sobre o setor cultural e a esplanada dos ministérios, não foi edificada com exceção de uma eventual casa de chá e da ópera, cujo acesso tanto se faz pelo próprio setor de diversões, como pelo setor cultural contíguo, em plano inferior. Na face fronteira foram concentrados os cinemas e teatros, cujo gabarito se fez baixo e uniforme, constituindo assim o conjunto deles um corpo arquitetônico contínuo com galeria, amplas calçadas, terraços e cafés, servindo as respectivas fachadas em toda a altura de campo livre para a instalação de painéis luminosos de reclame (fig. 11) As várias casas de espetáculo estarão ligadas entre si por travessas no gênero tradicional da rua do Ouvidor, das vielas venezianas ou de galerias cobertas (arcades) e articuladas a pequenos pátios com bares e cafés, e "loggias" na parte dos fundos com vista para o parque, tudo no propósito de propiciar ambiente adequado ao convívio e à expansão (fig. 11). O pavimento térreo do setor central desse conjunto de teatros e cinemas manteve-se vazado em toda a sua extensão, salvo os núcleos de acesso aos pavimentos superiores, a fim de garantir continuidade à perspectiva, e os andares se previram envidraçados nas duas faces para que os restaurantes, clubes, casas de chá etc., tenham vista, de um lado para a esplanada inferior, e do outro para o aclive do parque no prolongamento do eixo monumental e onde ficaram localizados os hotéis comerciais e de turismo e, mais acima, para a torre monumental das estações radioemissoras e de televisão, tratada como elemento plástico integrado na composição geral (Figs. 9, 11, 12). Na parte central da plataforma, porém disposto lateralmente, acha-se o saguão da estação rodoviária com bilheteria, bares, restaurantes, etc., construção baixa, ligada por escadas rolantes ao "hall" inferior de embarque separado por envidraçamento do cais propriamente dito. O sistema de mão única obriga os ônibus na saída a uma volta, num ou noutro sentido, fora da área coberta pela plataforma, o que permite ao viajante uma última vista do eixo monumental da cidade antes de entrar no eixo rodoviário residencial — despedida psicologicamente desejável. Previram-se igualmente nessa extensa plataforma destinada principalmente, tal como no piso térreo, ao estacionamento de automóveis, duas amplas praças privativas dos pedestres, uma fronteira ao teatro da ópera e outra, simetricamente oposta, em frente a um pavilhão de pouca altura debruçado sobre os jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de chá. Nestas praças, o piso das pistas de rolamento, sempre de sentido único, foi ligeiramente sobrelevado em larga extensão, para o livre cruzamento dos pedestres num e noutro sentido, o que permitirá acesso franco e direto tanto aos setores do varejo comercial quanto ao setor dos bancos e escritórios (fig. 8).

“mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées”
a)Piccadilly Circus: é uma famosa praça em área de cruzamento em Londres;
b)Times Square: é uma famosa área de cruzamento em Manhattan;
c)Champs Elysées: é uma prestigiada avenida em Paris, com cinemas, cafés e lojas.

“a torre monumental das estações radioemissoras e de televisão”
Conhecida como a Torre de TV de Brasília, sua arquitetura é de autoria do próprio Lúcio Costa.

11 – Lateralmente a esse setor central de diversões, e articulados a ele, encontram-se dois grandes núcleos destinados exclusivamente ao comércio — lojas e "magazins", e dois setores distintos, o bancário-comercial, e o dos escritórios para profissões liberais, representações e empresas, onde foram localizados, respectivamente, o Banco do Brasil e a sede dos Correios e Telégrafos. Estes núcleos e setores são acessíveis aos automóveis diretamente das respectivas pistas, e aos pedestres por calçadas sem cruzamento (fig. 8), e dispõem de auto-portos para estacionamento em dois níveis, e de acesso de serviço pelo subsolo correspondente ao piso inferior da plataforma central. No setor dos bancos, tal como no dos escritórios, previram-se três blocos altos e quatro de menor altura, ligados entre si por extensa ala térrea com sobreloja de modo a permitir intercomunicação coberta e amplo espaço para instalação de agências bancárias, agências de empresas, cafés, restaurantes, etc. Em cada núcleo comercial, propõe-se uma seqüência ordenada de blocos baixos e alongados e um maior, de igual altura dos anteriores, todos interligados por um amplo corpo térreo com lojas, sobrelojas e galerias. Dois braços elevados da pista de contorno permitem, também aqui, acesso franco aos pedestres.


12 – O setor esportivo, com extensíssima área destinada exclusivamente ao estacionamento de automóveis, instalou-se entre a praça da Municipalidade e a torre radioemissora, que se prevê de planta triangular com embasamento monumental de concreto aparente até o piso dos "studios" e mais instalações, e superestrutura metálica com mirante localizado a meia altura (fig. 12). De um lado o estádio e mais dependências tendo aos fundos o Jardim Botânico; do outro o hipódromo com as respectivas tribunas e vila hípica e, contíguo, o Jardim Zoológico, constituindo estas duas imensas áreas verdes, simetricamente dispostas em relação ao eixo monumental, como que os pulmões da nova cidade (fig. 4).

Não há um Jardim Botânico aos fundos do estádio. No lugar de hipódromo e Jardim Zoológico, temos ali o Parque da Cidade.

13 – Na praça Municipal, instalaram-se a Prefeitura, a Polícia Central, o Corpo de Bombeiros e a Assistência Pública. A penitenciária e o hospício, conquanto afastados do centro urbanizado, fazem igualmente parte deste setor.


14 – Acima do setor municipal foram dispostas as garagens da viação urbana, em seguida, de uma banda e de outra, os quartéis e numa larga faixa transversal o setor destinado ao armazenamento e à instalação das pequenas indústrias de interesse local, com setor residencial autônomo, zona esta rematada pela estação ferroviária e articulada igualmente a um dos ramos da rodovia destinada aos caminhões.

A dinâmica urbana desses espaços é diferente da prevista.

15 – Percorrido assim de ponta a ponta esse eixo dito monumental, vê-se que a fluência e unidade do traçado (fig. 9), desde a praça do Governo até a praça Municipal, não exclui a variedade, e cada setor, por assim dizer, vale por si como organismo plasticamente autônomo na composição do conjunto. Essa autonomia cria espaços adequados à escala do homem e permite o diálogo monumental localizado sem prejuízo do desempenho arquitetônico de cada setor na harmoniosa integração urbanística do todo.

Relatório do Plano Piloto de Brasília

16 – Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de grandes quadras dispostas, em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem (fig. 13). Disposição que apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação urbanística mesmo quando varie a densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios, e de oferecer aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e lazer, independentemente das áreas livres previstas no interior das próprias quadras (fig. 8).

Dentro destas "super-quadras" os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo porém a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis pavimentos e pilotis, e separação do tráfego de veículos do trânsito de pedestres, mormente o acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra.

Ao fundo das quadras estende-se a via de serviço para o tráfego de caminhões, destinando-se ao longo dela a frente oposta às quadras, à instalação de garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc., e reservando-se uma faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de quadras, para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalaram-se então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma, ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro, disposto conforme a sua classe ou natureza (fig. 13).

O mercadinho, os açougues, as vendas, quitandas, casas de ferragens, etc., na primeira metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros, modistas, confeitarias, etc., na primeira seção da faixa de acesso privativa dos automóveis e ônibus, onde se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento dos quarteirões e privativas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta, contígua às vias de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando assim as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto constitua um corpo só (fig. 14).

Na confluência das quatro quadras localizou-se a igreja do bairro, e aos fundos dela as escolas secundárias, ao passo que na parte da faixa de serviço fronteira à rodovia se previu o cinema a fim de torná-lo acessível a quem proceda de outros bairros, ficando a extensa área livre intermediária destinada ao clube da juventude, com campo de jogos e recreio.

Essa área atacadista, para caminhões, e a área de hortas e pomares foi substituída pela criação de quadras residenciais e comércios variados ainda na construção de Brasília. Trata-se da via W3, que já foi a única avenida da cidade, o que inviabilizou a destinação dessas áreas a atacados e chácaras em detrimento das necessidades encontradas na época. Também os comércios locais, assim como as áreas de lazer das superquadras, não seguiram o setorialismo engessado previsto. E não há essa questão de predominância de espécie vegetal de forma pré-definida.

17 – A gradação social poderá ser dosada facilmente atribuindo-se maior valor a determinadas quadras como, por exemplo, às quadras singelas contíguas ao setor das embaixadas, setor que se estende de ambos os lados do eixo principal paralelamente ao eixo rodoviário, com alameda de acesso autônomo e via de serviço para o tráfego de caminhões comum às quadras residenciais. Essa alameda, por assim dizer, privativa do bairro das embaixadas e legações, se prevê edificada apenas num dos lados, deixando-se o outro com a vista desimpedida sobre a paisagem, excetuando-se o hotel principal localizado nesse setor e próximo do centro da cidade. No outro lado do eixo rodoviário-residencial, as quadras contíguas à rodovia serão naturalmente mais valorizadas que as quadras internas, o que permitirá as gradações próprias do regime vigente; contudo, o agrupamento delas, de quatro em quatro, propicia num certo grau a coexistência social, evitando-se assim uma indevida e indesejável estratificação. E seja como for, as diferenças de padrão de uma quadra a outra serão neutralizadas pelo próprio agenciamento urbanístico proposto, e não serão de natureza a afetar o conforto social a que todos têm direito. Elas decorrerão apenas de uma maior ou menor densidade, do maior ou menor espaço atribuído a cada indivíduo e a cada família, da escolha dos materiais e do grau e requinte do acabamento. Neste sentido deve-se impedir a enquistação de favelas tanto na periferia urbana quanto na rural. Cabe à Companhia Urbanizadora prover dentro do esquema proposto acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população.


18 – Previram-se igualmente setores ilhados, cercados de arvoredo e de campo, destinados a loteamento para casas individuais, sugerindo-se uma disposição dentada em cremalheira, para que as casas construídas nos lotes de topo se destaquem na paisagem, afastadas umas das outras, disposição que ainda permite acesso autônomo de serviço para todos os lotes (fig. 15). E admitiu-se igualmente a construção eventual de casas avulsas isoladas de alto padrão arquitetônico — o que não implica tamanho — estabelecendo-se porém como regra, nestes casos, o afastamento mínimo de um quilômetro de casa a casa, o que acentuará o caráter excepcional de tais concessões.

Trata-se dos bairros Lago Norte e Lago Sul, que possuem algumas ocupações indevidas na orla do Lago Paranoá. Recentemente, essas invasões foram alvo do governo do Distrito Federal.

19 – Os cemitérios localizados nos extremos do eixo rodoviário-residencial evitam aos cortejos a travessia do centro urbano. Terão chão de grama e serão convenientemente arborizados, com sepulturas rasas e lápides singelas, à maneira inglesa, tudo desprovido de qualquer ostentação.

Apenas um cemitério foi construído no plano piloto e está situado na porção sul.

20 – Evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intacta, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana. Apenas os clubes esportivos, os restaurantes, os lugares de recreio, os balneários e núcleos de pesca poderão chegar à beira d'água. O clube de Golf situou-se na extremidade leste, contíguo à Residência e ao hotel, ambos em construção, e o Yatch Club na enseada vizinha, entremeados por denso bosque que se estende até à margem da represa, bordejada nesse trecho pela alameda de contorno que intermitentemente se desprende da sua orla para embrenhar-se pelo campo que se pretende eventualmente florido e manchado de arvoredo. Essa estrada se articula ao eixo rodoviário e também à pista autônoma de acesso direto do aeroporto ao centro cívico, por onde entrarão na cidade os visitantes ilustres, podendo a respectiva saída processar-se, com vantagem, pelo próprio eixo rodoviário-residencial. Propõe-se, ainda, a localização do aeroporto definitivo na área interna da represa, a fim de evitar-lhe a travessia ou o contorno.


21 – Quanto à numeração urbana, a referência deve ser o eixo monumental, distribuindo-se a cidade em metades NORTE e SUL; as quadras seriam assinaladas por números, os blocos residenciais por letras, e finalmente o número do apartamento na forma usual, assim por exemplo, N-Q3 – L – ap. 201. A designação dos blocos em relação à entrada da quadra deve seguir da esquerda para a direita, de acordo com a norma.

Usa-se, para designar as quadras, o nome do setor seguido do número da quadra, por exemplo: SQN 210.

22 – Resta o problema de como dispor do terreno e torná-lo acessível ao capital particular. Entendo que as quadras não devem ser loteadas, sugerindo, em vez da venda de lotes, a venda de quotas de terreno, cujo valor dependerá do setor em causa e do gabarito, a fim de não entravar o planejamento atual e possíveis remodelações futuras no delineamento interno das quadras. Entendo também que esse planejamento deveria de preferência anteceder a venda das quotas, mas nada impede que compradores de um número substancial de quotas submetam à aprovação da Companhia projeto próprio de urbanização de uma determinada quadra, e que, além de facilitar aos incorporadores a aquisição de quotas, a própria Companhia funcione, em grande parte, como incorporadora. E entendo igualmente que o preço das quotas, oscilável conforme a procura, deveria incluir uma parcela com taxa fixa, destinada a cobrir as despesas do projeto, no intuito de facilitar tanto o convite a determinados arquitetos como a abertura de concursos para a urbanização e edificação das quadras que não fossem projetadas pela Divisão de Arquitetura da própria Companhia. E sugiro ainda que a aprovação dos projetos se processe em duas etapas, anteprojeto e projeto definitivo, no intuito de permitir seleção prévia e melhor controle da qualidade das construções.

Da mesma forma quanto ao setor do varejo comercial e aos setores bancário e dos escritórios das empresas e profissões liberais, que deveriam ser projetados previamente de modo a se poderem fracionar em sub-setores e unidades autônomas, sem prejuízo da integridade arquitetônica, e assim se submeterem parceladamente à venda no mercado imobiliário, podendo a construção propriamente dita, ou parte dela, correr por conta dos interessados ou da Companhia, ou ainda, conjuntamente.

Não há esse sistema cotista.

23 – Resumindo, a solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza do risco original, o que não exclui, conforme se viu, a variedade no tratamento das partes, cada qual concebida segundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando daí a harmonia de exigências de aparência contraditória. E assim que, sendo monumental é também cômoda, eficiente, acolhedora e íntima. E ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. O tráfego de automóveis se processa sem cruzamentos, e se restitui o chão, na justa medida, ao pedestre. E por ter o arcabouço tão claramente definido, é de fácil execução: dois eixos, dois terraplenos, uma plataforma, duas pistas largas num sentido, uma rodovia no outro, rodovia que poderá ser construída por partes — primeiro as faixas centrais como um trevo de cada lado, depois as pistas laterais, que avançariam com o desenvolvimento normal da cidade. As instalações teriam sempre campo livre nas faixas verdes contíguas às pistas de rolamento. As quadras seriam apenas niveladas e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo arborizadas, mas sem calçamento de qualquer espécie, nem meios-fios. De uma parte, técnica rodoviária; de outra, técnica paisagística de parques e jardins.


Cabe observar que esse nivelamento paisagístico é de grande complexidade técnica e não foi assim executado, além de terem sido construídas as calçadas nas quadras. Lúcio Costa termina seu relatório definindo as escalas urbanas das quais é constituído seu projeto e coloca como lema a ideia de cidade parque.

Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca.

Ele termina fazendo alusão a José Bonifácio, patriarca da independência brasileira que já idealizava a construção de uma nova capital. Ponto este que demonstra a pretensão de retomar a modéstia com a qual iniciou o relatório.
 

Fonte do relatório e imagens:

Fontes para os comentários:


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